histmus blog

11/01/2011

artigo : Toda a liberdade de Bernstein

. artigo publicado em 10.01.2011

. . autor : João Marcos Coelho

. . . fonte : jornal O Estado de São Paulo

* * *

Sai no Brasil o histórico concerto em que o maestro troca verso de Schiller, usado por Beethoven

O belo mas traiçoeiro manto sublime que envolve as artes costuma esconder o fato de que, como todos os demais seres humanos, os artistas também são políticos, como dizia Picasso em seu linguajar direto como um gancho de esquerda: “O que você pensa que um artista é? Um imbecil que só tem olhos se é pintor, ou ouvidos se é músico, ou uma lira em algum canto de seu coração se é poeta, ou até, se é um boxeador, tem apenas músculos? Ao contrário, ele é ao mesmo tempo um ser político (…) A pintura não é feita para decorar apartamentos. É um instrumento de guerra para ataque e defesa contra o inimigo.”

Ele talvez tenha esquecido que os pintores levam vantagem em relação aos compositores, por exemplo, porque ninguém pode mexer em suas obras. Guernica, por exemplo. Ela lá está, íntegra até hoje, no Centro Nacional de Arte Rainha Sofia, em Madri. Pode-se gostar ou não da mensagem política que ela pronuncia visualmente, mas não se pode desfigurá-la. A música já não desfruta esse privilégio, como demonstra o DVD que agora sai no Brasil pela Opus Arte por R$ 39, com uma execução muito especial da Nona Sinfonia de Beethoven, regida pelo maestro norte-americano Leonard Bernstein na noite de Natal de 1989, poucos dias depois da queda do Muro de Berlim.

O concerto possuía um significado histórico importantíssimo: marcou a unificação de Berlim e das Alemanhas. Instrumentistas norte-americanos (da Filarmônica de Nova York), franceses (da Orquestra de Paris), russos (da Orquestra do Kirov de Leningrado) e ingleses (da Orquestra Sinfônica de Londres) juntaram-se à Orquestra Sinfônica e Coro da Rádio Bávara, enxertados com coral de crianças da Filarmônica de Dresden.

A Nona é uma das obras mais intensa e ideologicamente manipuladas da história da música. Nos últimos 186 anos, como narra em detalhes o pesquisador Esteban Buch em Música e Política – A Nona de Beethoven, livro de 2001, ela serviu aos poderosos de plantão e foi usada para todos os fins. Um processo que alcançou um de seus clímax naquele 1989. Bernstein “operou cirurgicamente” uma palavra dos famosos versos cantados no movimento final, a célebre “Ode à Alegria”: em vez de “Freude”, alegria, mandou as centenas de coristas cantarem “freiheit”, ou seja, liberdade. Isso tudo debaixo das barbas da estátua imponente do autor dos versos, o poeta e filósofo Schiller, na entrada do teatro berlinense que recebeu aquele concerto histórico.

Evidentemente, ninguém poderia discordar de uma mudança dessas. Falar de liberdade só pode soar positivo. E Bernstein, convenhamos, possuía uma legitimidade acima de qualquer suspeita para assumir a troca de palavras. Afinal, desde os tempos de estudante em Harvard, nos anos 30 do século passado, jamais escondeu de alguém sua postura política de esquerda.

O conteúdo de sua suculenta pasta confeccionada pelo FBI por meio século só foi divulgada há dois anos. A direita norte-americana não se conformava com o intenso ativismo político do maior músico de seu país, que recebeu, nos anos 60, panteras negras para jantar em seu elegantíssimo apartamento da Park Avenue, em Nova York, e propiciou ao então jornalista Tom Wolfe a criação da expressão “radical chic”.

A questão básica, entretanto, é outra. Ao alterar a letra de uma obra como esta, Bernstein e todos os participantes do evento equipararam-se aos musicólogos, músicos e compositores nazistas que substituíram as letras dos corais de Haendel para introduzir louvores ao Reich dos Mil Anos. Teoricamente, as mudanças são de igual natureza.

Por isso, e mesmo que me chamem de ranzinza e ingênuo como xingaram, no passado, figuras como George Orwell e Arthur Koestler, sinto que a atitude mais adequada teria sido respeitar os versos tal como foram utilizados por Beethoven em sua sinfonia coral.

No curto texto no folheto interno do DVD, Klaus Geitel chega a aventar a hipótese de que “sempre se especulou que Schiller tenha feito um jogo verbal de esconde-esconde e que seu poema na verdade referia-se a liberdade, e não simplesmente a alegria”; e diz que Schiller fez isso para fugir da censura daqueles “tempos despóticos”. Parece mais uma forçada de barra. Melhor sair do muro e assumir uma posição contra ou a favor. Em todo caso, bons tempos aqueles em que os músicos mudavam de lado por convicções ideológicas, e não por meras motivações individuais, como hoje em dia.

Quanto à performance – há, claro, uma enorme eletricidade no ar. As imagens prévias ao concerto de milhares de pessoas demolindo com picaretas o muro de Berlim impactam qualquer um. Mas a qualidade musical é mediana. Foi um “happening” beethoveniano. O máximo que se pode dizer é que a festa estava boa. E serviu para ilustrar um momento histórico, que marcou para muitos o verdadeiro fim do século 20.

• • • •

04/03/2010

Com Chopin, em busca da voz do piano que canta

. artigo publicado em 27.02.2010

. . fonte : jornal O Estado de São Paulo

. . . escrito pelo pianista Nelson Freire

* * *

No bicentenário do compositor, suas obras permanecem como emblemas da expressividade do instrumento

27 de fevereiro de 2010 | 0h 00
Nelson Freire – O Estadao de S.Paulo

Como definir o que faz da música de Frederic Chopin (1810- 1849), celebrada este ano por conta de seu bicentenário de nascimento, um universo tão especial? O grande pianista Arthur Rubinstein disse certa vez que, ao interpretar suas obras, tinha a sensação de que ela tocava diretamente o coração das pessoas. E é fascinante perceber que isso vale tanto para leigos quanto para melômanos. E, por que não, para os próprios pianistas, para quem suas peças são um desafio constante. A brasileira Guiomar Novaes costumava dizer, divertida, que Chopin exige tudo do intérprete, “que precisa tocá-lo com cabeça, coração, com o pé, com a mão, com tudo”. Já Martha Argerich me confessou, em uma de nossas muitas conversas sobre sua música, que acha Chopin o autor mais difícil de tocar. “Os pianistas erram nele mais do que com a obra de qualquer outro compositor.”

Desde criança mantenho relação estreita com essa música. Mas eu me lembro, aos 14 anos, do impacto provocado pela leitura da Guiomar para o Concerto nº 2 para Piano e Orquestra. Foi paixão à primeira audição. Bastava ouvir os dois primeiros compassos do segundo movimento para perceber como essa música era incrível – e como a sua leitura a reinventava, forçando a própria orquestra, comandada por Otto Klemperer, a uma leitura diferente do que estávamos acostumados. Comecei a colecionar gravações ao vivo desse concerto com Guiomar. E, desde então, ele tem um lugar especial na minha vida e na minha carreira. Gosto muito do primeiro concerto também, do qual a Martha fez uma excelente gravação com o maestro Claudio Abbado, mas o segundo, que foi o primeiro a ser escrito, ainda hoje me parece mais misterioso, tocante, com a emoção à flor da pele.

Mistério, expressividade, emoção e até um pouco de exotismo – tudo isso ajuda a explicar a genialidade de Chopin, ainda que não dê conta por completo da tarefa. E não podemos esquecer das pequenas revoluções de sua escrita. O último movimento da Sonata da Marcha Fúnebre é fascinante, maluco até, imagino o escândalo que deve ter sido para a época. E isso já vem desde as primeiras obras. Schumann ficou doido com as Variações Op. 2 sobre um tema de Don Giovanni. Sua música está repleta de harmonias e invenções que só vamos encontrar bem mais tarde, em Maurice Ravel, por exemplo, como no caso dos acordes dissonantes no fim do Scherzo nº 1. Não gosto de comparações. Mas há uma passagem no primeiro do Liszt, segundo movimento, parecida com o recitativo do segundo movimento do Concerto nº 2 de Chopin – no entanto, fica a sensação de que Chopin vai mais fundo em busca da expressividade, com resultados impressionantes.

Isso sem falar nos Noturnos. Ao longo da gravação, em dezembro, dos vinte noturnos de Chopin para a Decca voltei a me encantar com a riqueza de mundos que essas peças sugerem. Drama, poesia, sedução, cada um dos noturnos oferece um universo. E o interessante é justamente essa possibilidade de transitar de um mundo ao outro. E enfrentar o desafio de fazer o piano cantar. Outro dia vi uma entrevista de Vladimir Horowitz para a televisão italiana na qual ele dizia que o mais difícil no piano é fazê-lo cantar. Chopin entendeu isso. E o canto em sua música é fundamental, você enxerga os ecos das óperas do bel canto, de Donizetti e Bellini.

O trabalho com a música de Chopin dura a vida inteira, uma eterna descoberta. É um prazer incrível estudá-lo, é tudo tão bem escrito, o legato, o cantabile. E de certa forma ele exige do intérprete uma especialização. É preciso se entregar a ele. Aí sim o resultado fica digno de sua criação. Acho fascinante, por exemplo, o equilíbrio necessário entre liberdade e disciplina. Gosto da definição de Liszt: para ele, o rubato em Chopin era como uma árvore – as folhas sacodem ao favor do vento, mas o tronco está ali, constante. Às vezes me perguntam em entrevistas se eu gostaria de tocar outro instrumento. E eu me pego pensando que não – pois sem o piano, eu não teria a música de Chopin.

Nelson Freire é pianista. Em 10 de março, lança álbum dedicado aos Noturnos (Decca) e no dia 13, abre na Sala São Paulo a temporada comemorativa da Sociedade Chopin do Brasil, interpretando o Concerto nº 2

* * * *

03/03/2010

200 anos de Chopin comemorados com gravações de Martha Argerich

. artigo publicado em 28.02.2010

. . fonte : Deutsche Welle

* * *

O bicentenário do compositor romântico polonês é ensejo para um lançamento histórico: as primeiras gravações da pianista argentina em emissoras radiofônicas alemãs. Registro de uma paixão pianística duradoura.

Não foi apenas o público de Berlim Ocidental que caiu de amores pela pianista argentina em 1967, seu débutna metrópole dividida. Também o jornal Berliner Zeitungaclamou a “beleza de rosto inteligente”, com “juba à la Juliette Gréco”, que no palco se revelava uma “tigresa das teclas”.

E o papa da crítica musical alemã Joachim Kaiser atestou que, já na época, ela era tão boa “como apenas uma dúzia contada de pianistas, em todo o mundo”. Entre os compositores, a jovem Martha Argerich manifestava uma preferência declarada: Frédéric Chopin.

Virtuose precoce

A carreira de Argerich, nascida em Buenos Aires em 1941, começou muito cedo: já aos oito anos de idade ela estreava em público. A partir de meados da década de 1950, a adolescente conquistou a Europa, arrebatando, um atrás do outro, os primeiros lugares dos concursos de piano de que participava.

Essa trajetória brilhante culminou em 1965 com o prêmio do Concurso Chopin, em Varsóvia. Imediatamente as companhias fonográficas iniciaram uma corrida pelo contrato de exclusividade com essa excepcional pianista de 24 anos. A disputa foi decidida a favor da alemã Deutsche Grammophon.

Contudo os registros históricos lançados por ocasião dos 200 anos do nascimento de Frédéric Chopin não provêm dos arquivos da gravadora, mas sim de duas emissoras de rádio e televisão: a WDR e, em especial, a antiga RIAS, de Berlim. É controvertido o dia exato em que o músico nasceu na localidade polonesa de Zelazowa Wola: se 22 de fevereiro, como consta de sua certidão, ou 1º de março de 1810, data que menciona em cartas à mãe.

Raridades

Desde o início de sua carreira, a pianista privilegiou o repertório romântico, no qual a obra de Frédéric Chopin ocupa posto central. Numa entrevista concedida em 1967, Argerich analisava: “Quando se toca Chopin, tudo é virtuosismo. Tudo, mesmo os menores prelúdios, são virtuosísticos. Mas não acho Chopin exibicionista: ele é antes sutil. Pianisticamente, tudo dele é muito mais difícil do que Liszt”.

Até hoje, a musicista portenha interpreta as mazurcas, estudos, polonaises, sonatas e baladas do compositor-pianista romântico com paixão, dramaticidade e sensualidade inigualáveis, e este CD é um must, tanto para os aficionados por Chopin quanto para os fãs de Martha Argerich.

Entre interpretações cheias de força, tensão e sentimento, o álbum traz aquela que é possivelmente a primeira gravação com Argerich: sua versão da Balada nº1 em sol menor, opus 23 executada para a RIAS de Berlim em 1959, aos 17 anos de idade. Outra raridade é o registro ao vivo da Sonata nº 3, opus 58 de Chopin, assim como diversas mazurcas e noturnos gravados em março e dezembro de 1967.

Autor: Klaus Gehrke (av)
Revisão: Carlos Albuquerque