histmus blog

31/07/2010

Robert Schumann: notas para se “deixar em paz”

. publicado em 29.07.2010

. . fonte : Deutsche Welle

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Há 150 anos o compositor natural da Saxônia falecia num asilo para doentes mentais. Oscilando entre a poesia e a música, ele ocupa um lugar único na história da música.

“O mais rápido possível.” “Mais rápido.” “Mais rápido ainda.” Que tipo de louco proporia a sério um paradoxo tão absurdo? Pois estas instruções acompanham de fato um movimento da Sonata para piano em sol menor op. 22, de Robert Schumann.

No caso, a designação “louco” tem um sentido tristemente literal, pois este exponente do Romantismo morreu confinado num manicômio, a 29 de julho de 1856, em Endenich, nas proximidades de Bonn.

Por si só, tal fim inglório já bastaria para tornar Schumann um esqueleto no armário da história da música. Esta, quando não descamba para o voyeurismo declarado, se esmera em fornecer imagens de gênios e semideuses; se não plenamente exitosos, pelo menos glamourosamente desajustados. Vide: o persistente mito da “criança divina” Mozart.

Schumann não é Beethoven

Porém Schumann é uma figura problemática não apenas por razões biográficas. O modesto cantinho que a posteridade lhe reservou – onde ele se encontra provavelmente assoviando uma melodia infinita e solitária, como em seus últimos anos de vida – é o dos que foram excelentes, sem chegar a ser “grandes” ou “gênios”. Como quer que se definam estes termos.

Schumann escreveu lieder e música de câmara: mas não é o sublime Schubert. Ele compôs quatro sinfonias, concertos e centenas de peças pianísticas: mas não foi um mestre das grandes formas como o “titã” Beethoven. Contudo a (grande) lição de Schumann é justamente esta: perde tempo quem procura julgá-lo por critérios estranhos a seu próprio universo criativo.

Um paladino da música schumanniana foi o filósofo francês Roland Barthes. Assim ele sintetizou esse caráter não-grandiloqüente, anti-retórico, antititânico: “A música pianística de Schumann, que é difícil, não suscita a imagem do virtuosismo; não podemos tocá-la nem de acordo com o velho delírio nem com o novo estilo. Essa música é intimista (o que não significa suave), ou melhor, particular, mesmo individual, refratária à abordagem ‘profissional’, uma vez que tocar Schumann implica uma inocência técnica que poucos artistas podem alcançar”.

De forma mais concisa, o pianista András Schiff transmitiu a mesma mensagem, ao dizer: é preciso deixar as notas de Schumann “em paz”, a música fala por si.

Das leis ao piano

Robert Alexander Schumann nasceu em Zwickau, Saxônia, no dia 8 de junho de 1810. Na qualidade de editor e escritor, seu pai lhe proporcionou contato com a fina flor da literatura da época, de Lord Byron e Jean Paul a toda uma legião de poetas. Robert começara a estudar piano relativamente tarde, aos oito anos, sem demonstrar talento pronunciado. Em 1826, após a morte do pai, foi enviado a Leipzig para cursar Direito.

Uma carta à mãe, em 1829, marca a guinada surpreendente na trajetória do jovem intelectual: “Cheguei à conclusão de que, com trabalho, paciência e um bom professor, seria capaz de ultrapassar qualquer pianista, num prazo de seis anos. Além disso, tenho imaginação e talvez habilidade para um trabalho de criação individual”. No ano seguinte, anotaria em seu diário: “Sou excelente em música e poesia, mas não um gênio musical. Meus talentos de músico e de poeta estão no mesmo nível”.

O “bom professor” era ninguém menos do que Friedrich Wieck, que se tornaria seu sogro e pior inimigo. Sob a promessa (não cumprida) de deixar de fumar charutos e, sobretudo, beber tanto, Schumann se mudou em outubro de 1830 para a casa do mestre. De início sua filha, Clara, pianista-prodígio de apenas 11 anos de idade, não interessava em especial o jovem músico.

A história do dedo

bon mot provavelmente não é original, mas a verdade é que o dedo anular representa o calcanhar de Aquiles dos pianistas. Encurralado entre os tendões dos vizinhos, o quarto dedo é menos independente e mais penoso de “adestrar” do que todos os outros, quer o brutal polegar, quer o débil mínimo.

Ambicioso e não necessariamente o mais paciente dos seres humanos, Schumann resolveu literalmente pôr mãos à obra, aplicando-se o “quiroplasta”, um aparelho então na moda, com o fim de favorecer a independência do dedo recalcitrante. Combinado com uma média de sete horas de estudo por dia, o resultado foi uma grave inflamação dos tendões e paralisia total do dedo médio da mão direita.

Esta é a versão tradicional. Pesquisas mais recentes fornecem uma explicação (um pouco) menos bizarra para esta tragédia na vida do músico saxão. Como havia contraído sífilis, por volta de 1830 ele se submetera ao tratamento então em voga: mercúrio e/ou arsênico. Segundo o biógrafo Eric Sams, pode ter sido esta a causa original da inércia digital de Schumann, anterior ao emprego do quiroplasta. E, em última análise, a causa de sua morte.

Seja como for, a terapia da paralisia resultante não foi mais feliz: “banhos animais” (inserção das mãos em carcaças de animais recém-abatidos), choques elétricos e dietas experimentais provam-se inúteis. Em 1832 os sonhos de virtuose de Robert estavam definitivamente enterrados.

Clara e Robert: simbiose e destruição

Nos anos seguintes inicia-se um romance entre ele e a segunda filha de seu mestre, Clara. Wieck fica horrorizado com a perspectiva de ter como genro o jovem – que agora taxa de beberrão e perdido – e se opõe com toda a autoridade paterna à ligação. Somente após uma longa batalha judicial Robert desposa Clara, em 1840.

O casal Schumann é possivelmente um dos mais anticonvencionais da história da música: uma mistura de simbiose, apoio incondicional e perniciosidade. Profissionalmente, Clara representou um papel complementar, quase compensatório na vida de Robert: à medida que ele era forçado a renunciar ao piano, ela ascendia como concertista. Uma carreira entrecortada, é certo, por freqüentes gestações (o casal teve oito filhos).

Alguns estudiosos chegam a classificar as notórias escapadas homossexuais do compositor durante os anos de casamento como um bem-vindo alívio para Clara. Cinismo à parte, a morte do marido foi uma libertação para ela, que pôde finalmente realizar seu brilhante destino de pianista, Clara Schumann sobreviveu ao marido ainda 40 anos, falecendo aos 77 anos em Frankfurt do Meno.

Augusto Valente

13/06/2010

“A música de Beethoven reflete, até o fim, a vontade de viver”

. entrevista publicada em 13.09.2008

. . com Kurt Masur

. . . fonte : Deutsche Welle

 

Um dos pontos altos do Beethovenfest 2008 é a execução do ciclo completo das sinfonias do compositor com a Orquestra Nacional da França sob a batuta de Kurt Masur. Uma entrevista com o maestro alemão de 81 anos.

Bonn: concertos no telão em praça pública

Bonn: concertos no telão em praça pública

Deutsche Welle: Por que o senhor se impõe o desafio de executar todas as nove sinfonias de Ludwig van Beethoven em quatro dias?

Kurt Masur: Sempre que falam de Beethoven, as pessoas acreditam ter formação musical. “Sim, um grande compositor, claro, e…” Ao entrar em detalhes, muitos vêem Beethoven freqüentemente como distração, intérprete das idéias da Revolução Francesa, com bocarra de leão e gestos combativos – e de humor aparentemente limitado. Minha meta é fazê-las entender como ele começou com sua primeira sinfonia. Nos termos de hoje em dia eu diria: tão mal comportado quanto possível.

 

Como concebeu este ciclo? Há algo assim como um arco total?

Claro que é um arco. É mesmo um pouco trabalhoso escutar as sinfonias número um, dois e três em uma noite. Porém, as duas primeiras são um pouco mais curtas e Beethoven só alcançou uma forma sinfônica verdadeiramente pessoal com a terceira.

E é isto o que quero demonstrar através deste exemplo: quem assiste o concerto compreende perfeitamente que a leveza, a poesia, o humor da primeira não têm absolutamente nada a ver com a terceira. E a declaração humanista da terceira, cuja dedicatória original era a Napoleão, como sabemos, e que foi rasgada por Beethoven, irado porque não queria se identificar com um imperador e com alguém que oprimia as pessoas.

Para mim, é decisiva a questão: até aonde vai nossa obrigação, como intérpretes, para com um ouvinte que ao primeiro acorde deseja perceber o espírito dessa música? Devo dizer: a Orquestra Nacional da França me deixa feliz. Nos preparativos, nos ensaios, estivemos à beira da exaustão, pois as sinfonias de Beethoven não são tão fáceis de tocar. Não se pode tocá-las com leveza, mas sim com seriedade. E é preciso levar o humor a sério, e possuir a rapidez com a qual Beethoven súbito muda o temperamento. Estas são coisas que queremos levar até o público. Senão é, enfim, “ah, o velho Beethoven, já conhecemos tudo mesmo”.

 

O senhor descobre ainda hoje em dias coisas novas em Beethoven?

Sempre. Não sabemos mais como os grandes solistas introduziam os temas musicais. E hoje há poucas exceções. Um Yo-Yo Ma, Lisa Leonskaia, Anne Sofie Mutter, eles sentem algo, preparam-se internamente para executar o próximo tema. E é daí que vem o encantamento da platéia.

 

Como explicar hoje Beethoven às pessoas? Isto é sequer possível?

A música de Beethoven é tão rica. Na realidade, não há nenhum sentimento humano que ela não tenha expressado. Seja Die Wut über den verloren Groschen (A raiva pelo tostão perdido) ou Für Elise (Para Elise), ou todas essas pequenas peças que, sabe-se, foram obras de ocasião, para mostrar reverência a uma bela menina ou mulher – apaixonado ele esteve a vida toda, disso sabemos. A tragédia de sua vida foi, quando compunha a Segunda Sinfonia, perceber pela primeira vez que a audição falhava. Foi aí que ele escreveu o Testamento de Heiligensatdt: “Oh, homens, que me considerais incontrolável ou desagradável, só quero dizer que sofro”.

Público vai às ruas em Bonn assistir a concerto sob a batuta de Kurt Masur

Público vai às ruas em Bonn assistir a concerto sob a batuta de Kurt Masur

A outra chave é a Carta à Amada Imortal, despedida de uma das mulheres com que tivera contato nessa época, em Teblitz. Ela não foi enviada, mas existe como documento. Quando executei a Oitava agora em Paris com a minha orquestra, contei aos músicos: “Vejam, Beethoven escreveu as primeiras oito sinfonias no espaço de pouco mais de dez anos. E após a Carta à Amada Imortal ele não escreveu durante dez anos mais nenhuma outra grande obra orquestral. Só então a Missa solene e ainda mais tarde a Nona“.

Precisamos imaginar como se sentia um homem que na época realmente não ouvia nada. Ele regeu a estréia [da Nona Sinfonia], porém atrás dele estava alguém que orquestra e coro pudessem seguir, pois ele mesmo estava totalmente confuso e não tinha o menor controle. Um homem que consegue a façanha de, no fim da vida, mais uma vez escrever uma mensagem para a humanidade. Ele se sentia importante o suficiente para acreditar haver recebido de Deus a missão para tal. Nada de sinfonia da despedida, como a Sexta Sinfonia de Tchaikovsky.

A última mensagem que esse homem doente, solitário e se sentindo miserável legou à humanidade foi: Alegria, bela centelha divina. Isto é grandeza. E dá força também àqueles que apenas escutam a música e que não sabem grandes coisas, pois eles percebem que esta música é plena de superação de dificuldades, melancolia e luto, e que reflete, realmente, sempre e até o fim, a vontade de viver.

Birte Strunz (av)

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20/05/2010

Beethoven: criado de muitos patrões?

. artigo publicado em 20.09.2008

. . fonte : Deutsche Welle

 

Qual era a relação entre Beethoven e os nobres? Financeiramente dependente deles, o músico sonhava com liberdade e revolução. Uma história de desilusões e ambivalências.

Monumento ao compositor em Viena

Monumento ao compositor em Viena

O Beethovenfest 2008, sob o slogan “Poder.Música”, questiona o papel desempenhado pela música em tempos sem liberdade, e como os poderosos se servem dela. E convida a mais uma pergunta: qual era a relação do próprio compositor com a nobreza? Dividido entre sustento e desapontamento, ele criou obras até hoje representativas da idéia de revolução. Mas terá ele sido criado de patrões demais?

Prometeu

Ainda em vida, a obra de Ludwig van Beethoven o elevou à categoria de mito. Ele se tornou o modelo do artista romântico, assim como do desejo de se libertar tanto de formas musicais como de concepções obsoletas do mundo.

O mestre de Bonn se tornou uma figura de identificação musical numa fase de reviravolta política, da era aristocrática para a burguesa. Ao escrever música para o balé As criaturas de Prometeu, Beethoven já se dedicava em 1801 a um tema altamente atual.

O semideus da mitologia grega Prometeu, portador da luz e patrono da humanidade, era o símbolo do Iluminismo e personificação mítica da revolução. Napoleão Bonaparte era considerado o “Prometeu moderno”.

Entre dependência e desprezo

Beethoven e Goethe encontram a família imperial em 1812

Beethoven e Goethe encontram a família imperial em 1812

Durante toda a vida, o músico alemão esteve dividido entre servir e desprezar a nobreza, entre o anseio pela revolução e a resignação. Sua atitude perante os poderosos foi sempre ambivalente. Entre esperança na nobreza e desilusão em relação a ela, oscilou todo o trajeto da vida de Beethoven.

Nascido em 1770, filho de um tenor da corte do príncipe eleitor, o menino-prodígio já era exibido à aristocracia aos 8 anos de idade. Aos 19, protestava pela primeira vez: o piano da corte era ruim, impossível tocar nele, afirmava. Era o ano da Revolução Francesa.

Porém a vida de um instrumentista e compositor era, na época, subordinada à corte e à Igreja. A convite do veterano Joseph Haydn, o jovem vai estudar em Viena. E resolve permanecer na cidade imperial, embora o príncipe eleitor de Bonn jamais o haja liberado oficialmente dos serviços de sua corte.

E Beethoven se tornou o queridinho da nobreza vienense. Graças a ela, foi um dos primeiros músicos verdadeiramente autônomos, independentes de postos na corte ou eclesiásticos. O Barão van Swieten, os príncipes Liechnowsky, Lobkowitz e Kinsky lhe pagavam respeitáveis benefícios anuais e pensões vitalícias. Beethoven foi ainda professor de piano do arquiduque Rudolf, para quem escreveu o Concerto triplo em dó maior opus 56, para violino, violoncelo, piano e orquestra.

Em torno de Napoleão

Embora quase exclusivamente financiado pelos nobres, Beethoven era extremamente desrespeitoso com eles. Considerando-se um cidadão livre, tachava seus mecenas de “ralé aristocrática” e os tratava de forma coerente com essa opinião.

Em Viena, era notório o entusiasmo do compositor pelas idéias liberais e pelo inimigo público número um, Napoleão. E no entanto, Beethoven escapou à censura e à polícia secreta austríaca. Em liberdade quase absoluta, até mesmo compôs em 1803 uma homenagem sinfônica a Napoleão: a Sinfonia nº 3, opus 55 (Heróica).

Montagem de 'Fidelio' na Ópera de Leipzig, 2005

Montagem de 'Fidelio' na Ópera de Leipzig, 2005

Apesar de fanático pela liberdade, o músico estava longe de ser um observador arguto da situação política. A virada de Napoleão, de herói revolucionário para absolutista, o consternou. Ao saber que o general francês se fizera coroar imperador, Beethoven rasgou a homenagem original da Heróica e dedicou a sinfonia a seu mecenas príncipe Lobkowitz, um nome representativo do Ancien Régime.

No ápice da fase antinapoleônica, o compositor escreveu em 1813 uma peça de guerra. Com A vitória de Wellington ou a Batalha de Vitoria, Beethoven se torna de um só golpe popular também entre a burguesia vienense. O elaborado espetáculo bélico-musical descreve em sons a derrota das tropas francesas pelo marechal inglês Arthur Wellesley, duque de Wellington, na cidade de Vitoria, no norte espanhol. Era o início da derrocada de Napoleão.

Fidelio

“Nada além de tambores, canhões, miséria humana de toda sorte”, exclamou Beethoven por ocasião da investida militar contra Viena, em 1809. Ele era um pacifista decidido, como fica claro em sua representação sonora de batalhas.

O músico reagiu ao Congresso de Viena de 1815, que definiria a nova ordem política na Europa, com a monumental cantata Der glorreiche Augenblick (O glorioso momento). Para ele, tudo o que contava era a vitória sobre Napoleão, o rebaixamento da França e a esperança na segurança e na liberdade reconquistadas.

Já em 1805, Beethoven denunciara a tirania e a ditadura em sua única ópera, Fidelio(de início intitulada Leonore). Entre os alvos desta crítica, estavam sem dúvida os invasores franceses de Viena.

Ode à Alegria

Frontispício da partitura da 'Nona sinfonia'

Frontispício da partitura da 'Nona sinfonia'

Desde a ditadura napoleônica, Beethoven não mais acreditava que rebelião corajosa e revoluções pudessem reverter hierarquias e depor tiranias. Quase todas as suas obras foram dedicadas a patronos nobres, quem quer que fossem.

Durante a vida inteira, ele serviu aos poderosos, vendendo-lhes sua música. E ao mesmo tempo sonhava com a independência em relação a eles. No fim da vida, realizou este sonho na Nona sinfonia, integrando nela a Ode à Alegria de Friedrich Schiller.

Um monumento humanista feito de sons, embora o dedicando da sinfonia seja o rei Frederico 3º da Prússia. Em 1824 a Nona sinfonia é estreada. Três anos mais tarde, morre Ludwig van Beethoven.

Dieter David Scholz (av)

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