histmus blog

02/09/2010

Entrevista : Estadão : Haitink, o devoto de Mahler

. entrevista no Estadão com o Maestro

. . Bernard Haitink

Regente que comandou a Filarmônica de Viena na sexta fala de sua carreira e preferências

29 de agosto de 2010 | 0h 00

João Luiz Sampaio – O Estado de S.Paulo

Sentado no café de um hotel no centro de Salzburg, com vista para o Rio Salzach, Bernard Haitink sorri com a lembrança. “Estive aqui pela primeira vez em 1947, tinha acabado de completar 18 anos. Estava animado para ver de perto um maestro de quem se falava muito, Wilhelm Furtwängler. Eu o vi regendo Fidelio, outras óperas, e… nada. Não provocou impressão nenhuma em mim. Até que durante um concerto, a 8.ª Sinfonia de Bruckner, algo aconteceu e uma eletricidade tomou conta do teatro de maneira muito forte. A apresentação era de manhã e lembro que passei toda a tarde caminhando na margem desse rio, tentando entender o que eu acabara de testemunhar. É algo de que não me esqueço até hoje.”

Aos 81 anos, foi Haitink quem comandou a Filarmônica de Viena no concerto matinal de sexta-feira. No programa, Bruckner, a 5.ª Sinfonia. “Não há receita para interpretar essa música”, diz. “Eu a toquei várias vezes ao longo da vida e ela entra no seu corpo, na sua mente. Quanto mais se faz Bruckner, mais se compreende sua linguagem especial, se desenvolve uma relação com ela. Você só deve interpretá-la quando acredita.”

Bruckner foi um cristão devoto. Em que medida uma realidade como essa influencia sua interpretação? “Não estou certo. Para mim, a música vem antes. Eu definitivamente não sou católico. Mas sua religiosidade diz algo para você e é importante compreendê-la, se sentir tocado de alguma forma. Não é preciso acreditar no que ele acreditava para compreender sua relação com o que é humano. Veja, nós, intérpretes, somos pessoas de segunda categoria (risos). Temos contato com essa genialidade que é do compositor, devemos entender esse milagre que foi a criação de uma obra. Se deixa de ser um milagre, então é hora de parar.”

Haitink gravou com a Concertgebouw de Amsterdã o ciclo completo das nove sinfonias de Bruckner nos anos 80. Foi a primeira orquestra que assumiu, em 1961, e lá ficou até 1988, época em que se tornou diretor da Royal Opera House Covent Garden, de Londres, posto que deixou em 2002. Quatro anos depois, surpreendeu ao recusar convite para ser regente titular da Sinfônica de Chicago. “Estava muito velho para assinar um contrato longo”, explica. No fim, a orquestra acabou convidando Riccardo Muti para o posto e Haitink aceitou ficar no cargo até o começo deste ano, enquanto o italiano não chegasse. “Todo maestro tem uma data de validade à frente de uma orquestra, é bobagem pensar o contrário.”

Além de Bruckner, Haitink se dedicou ao longo de toda a carreira a Gustav Mahler. Nos anos 60, foi um dos responsáveis pelo resgate de sua obra. “Nos anos 20, 30, músicos como Bruno Walter abriram muito espaço para suas peças, mas a guerra apagou o trabalho que eles haviam feito. Nos anos 60, é preciso lembrar, a indústria fonográfica vivia o começo de uma efervescência – e certo dia um representante da Phillips chega para nós e diz: queremos gravar um ciclo completo das dez sinfonias de Mahler. Ficaram todos animados, até que eu disse: tudo bem, eu posso fazer, mas ainda estou engatinhando nessa música e preciso de dez anos, um para cada sinfonia. E depois gravamos. Não sei por que, mas eles aceitaram”, ri o maestro.

Lógica. “Hoje ele é o novo Beethoven”, continua. “Todo maestro quer ter seu ciclo completo. Mahler dizia que sua hora chegaria. Mas não sei o que ele acharia disso. Até porque os maestros têm uma tendência a tocá-lo cada vez mais alto, tentando encontrar nas peças lógicas que elas não possuem. Vejo isso e me dou conta de que é hora de ficar um pouco quieto no meu canto.”

Haitink conta que, por conta das homenagens, em 2010 e 2011, aos 150 anos de nascimento e ao centenário de morte do compositor, recebeu diversos convites para realizar ciclos completos da obra mahleriana. “Mas disse não a todos. Em Chicago, eles queriam uma integral para marcar minha despedida, mas preferi fazer Beethoven. Mahler é um universo rico, mas Beethoven é o ser humano nu, sua música é fantástica na estrutura, na forma e na emoção. Só aceitei, em Amsterdã, fazer a 9.ª Sinfonia, em 2011, porque é peça única, uma despedida especial. E, depois de tantos anos, e com a idade que tenho, me sinto preparado para voltar a ela.”

Nos últimos anos, Haitink tem gravado bastante com a Sinfônica de Chicago e com a Sinfônica de Londres, da qual é regente emérito. Detalhe: as duas orquestras criaram selos próprios. “É o único caminho possível neste momento em que a indústria parece ter desistido de solucionar sua crise”, diz. “E acho um formato interessante, dá liberdade maior à orquestra e seu maestro. Com o selo de Chicago, vendemos bem, mas nada excepcional. São muitas as opções, nada fica. A vida útil de uma gravação é muito pequena. Hoje tudo é muito rápido, ou você vende tudo logo ou, pronto, é esquecido. O artista deve entender que não conseguirá, com um disco, alcançar a eternidade. Rapidez é a palavra do momento, mais do que nunca. Veja Salzburg. Houve uma época em que você encontrava todos os maestros e solistas do festival nas ruas, fazendo compras. Hoje, as pessoas tocam e vão embora correndo.”

* * *

fonte :

O Estado de São Paulo

01/09/2010

Artigo : Ensaio de orquestra

. artigo sobre o Ensaio da Orquestra Filarmônica de Berlim no festival de Salzburg, Áustria

* * *

Ensaio de orquestra

Estado acompanhou com exclusividade trabalho do maestro Simon Rattle com a Filarmônica de Berlim

31 de agosto de 2010 | 0h 00

João Luiz Sampaio / SALZBURG – O Estado de S.Paulo

Caos sonoro sobre o palco da Grande Sala do Festival na manhã de domingo. Pouco antes das dez horas, instrumentos são afinados, músicos conversam, riem alto, arrastam cadeiras. Não dão muita atenção ao inspetor que, na frente da orquestra, chega para avisar que o ensaio não contará com a solista, a soprano Karitta Mattila e, que portanto, apenas as demais peças serão repassadas. Mais barulho, brincadeiras, partituras sendo procuradas nas mochilas. Até que do canto do palco surge a figura discreta, de roupa toda preta, em contraste com a longa cabeleira branca. Partituras na mão, sobe no pódio. Feito o silêncio, anuncia, suavemente: “Schoenberg, por favor.”

A orquestra é a Filarmônica de Berlim e a figura à sua frente, o maestro inglês Simon Rattle, diretor do grupo, para muitos o melhor conjunto sinfônico do mundo, rivalizado apenas pelos filarmônicos de Viena. Encarregados do concerto de encerramento desta edição do festival, tocariam naquela noite um programa ambicioso: além das Quatro Últimas Canções de Strauss, três pilares da música do século 20: as Seis Pecas para Orquestra, de Schoenberg; as Cinco Pecas para Orquestra, de Alban Berg; e as Três Pecas para Orquestra, de Anton Webern.

Se há uma genealogia da música contemporânea, no topo da árvore, diz Rattle, devem estar estas peças, escritas antes dos anos 20. Ainda hoje soam revolucionárias. E Rattle, em um misto de alemão e inglês, pede à orquestra que esteja atenta a detalhes. “Mais vibrato nas cordas, especialmente vocês, violoncelos”, diz. Puxa o spalla de lado e corrige a articulação das cordas. “Ta, ta, ta, ra, ta, ta, ta. Se não for assim, vocês não vão dar conta de acompanhar os metais, simples assim. Eles são o modelo aqui.” Rattle parece trabalhar em especial a arquitetura sonora. Corrige os sopros, batendo com a batuta na estante. “Um, dois, três. Precisão aqui é fundamental, marquem as notas. Evitem essa diminuição de andamentos, senão cada um vai chegar no final em momentos diferentes. A essência está aqui.” Volta às cordas. “O desafio, para vocês, é justamente o contrário. O esboço de melodia aqui não pode estar tão evidente. Apenas insinuem uma atmosfera etérea. Como ondas – o movimento é perceptível, mas o que leva a ele não precisa ser mostrado.”

Silêncio ensurdecedor. Mais interessante que ver Rattle construindo a interpretação, passagem a passagem (“ensaio bom e difícil”, comenta um músico depois), é perceber a reação da orquestra a suas orientações. Na obra de Alban Berg, encasqueta com o andamento em determinada passagem. “De novo”, pede simplesmente. “Vocês sabem.” E o som que surge em seguida articula toda a orquestra em um todo orgânico, brilhante. Sim, eles sabem. E como.

Chegamos então à peça de Anton Webern, seis rápidos movimentos que mobilizam um enorme efetivo orquestral. A percussão explode em um caos sonoro… uma, duas, três vezes. Rattle interrompe a orquestra calmamente. Há um caminho a ser construído aqui, diz. “Esqueçam a música por um instante. E se perguntem: para que serve a pausa que vem logo em seguida? Ele fala baixo, não desvia o rosto um só instante da centena de instrumentistas da filarmônica. “Atenção à dinâmica. O que exatamente estamos construindo aqui? Não é música, é silêncio. Mais um estouro da percussão. “Ainda não. A questão é a seguinte. Depois da música, vem o silêncio. Mas este silêncio precisa ser ensurdecedor. Barulhento.” Rattle termina o ensaio assim, regendo o silêncio. “Obrigado”, diz; cumprimenta o spalla. E deixa o palco rapidamente.

INTERVALO

Shakespeare musical

Depois de intensa negociação,

o diretor artístico da edição do ano que vem do Festival,

Markus Hinterhäuser, fechou com o maestro Riccardo Muti a ópera que ele vai apresentar em Salzburg no ano que vem: será o Macbeth de Verdi.

Hinterhäuser garante que vai aproveitar o gancho para apresentar pela cidade outras obras musicais inspiradas na peça de Shakespeare.

Disco novo

A violinista americana Hillary Hahn aproveitou a passagem por Salzburg, onde tocou com a Sinfônica Jovem Gustav Mahler o concerto de Brahms, para apresentar seu novo disco, com o concerto para violino e orquestra de Tchaikovski, que chega às lojas no próximo mês.

Realeza do canto

Foi um italiano que se destacou no concerto da Orquestra Real de Amsterdã: o veterano baixo Ferruccio Furlanetto, que interpretou as Canções de Dança e Morte do russo Mussorgsky.

fonte :

O Estado de São Paulo

31/08/2010

Elektra : Richard Strauss

fonte :

Blog de João Luiz Sampaio

Diário de Salzburg: Elektra de alta voltagem

por joaosampaio

31.agosto.2010 12:49:48

É o cenário que entrega desde a abertura das cortinas o caráter vertiginoso da história a ser narrada. As rampas e plataformas sinuosas, as paredes altas, a luz que parece vinda de lugar algum, os buracos no chão – tudo serve de metáfora à mente da personagem principal da “Elektra” do compositor Richard Strauss, com libreto de Hugo Von Hoffmanstahl a partir da narrativa mitológica. O tema é o desejo de vingança. Elektra nos revela sua obsessão com a morte do pai, Agamenon – e o ódio que direciona contra sua mãe, Clytaemnestra, e seu novo marido, Aegysth. Ela permanece todo o tempo sobre o palco. Mas há muitas tintas em sua obsessão – e a riqueza da música de Strauss vem em parte de sua capacidade de criar ambiente sonoros para cada uma delas. De certa forma, o libreto se articula em torno dos confrontos de Elektra com os demais personagens da história: desde as damas que comentam sua vida à margem da casa de sua família depois da morte do pai até o encontro com o irmão Orestes, em quem ela deposita a esperança de vingança contra a mãe. A música é angulosa, ganha cores fortes no diálogo com a irmã Chrysothemis, que tenta devolver a ela alguma esperança de vida; é sinuosa quando sua mãe a procura e narra os sonhos que a tem perturbado; lírica quando reconhece na figura do cavaleiro anônimo seu irmão; irônica quando envia Aegysth para dentro da casa onde a morte o espera; e resignada na mistura de desejos de morte e vida com que a personagem vê sua vingança realizada. Não foi por acaso que a Unitel Classics mandou correndo a Salzburg uma equipe com a missão de filmar a produção, encabeçada pelo diretor alemão Nikolas Lenhoff e o maestro italiano Danielle Gatti, para o lançamento em DVD, que deve acontecer até o primeiro semestre de 2011. Da mesma forma que o cenário único oferece múltiplas s possibilidades de interpretação, também a leitura musical de Gatti, à frente da Filarmônica de Viena, é eficiente na recriação dos momentos psicológicos da personagem. Gatti identifica no caos diversos sentidos e direções musicais. E faz isso com a ajuda de um time de estrelas como solistas. Iréne Theorin é uma Elektra repleta de matizes. Eva-Maria Westbroek dá a Chrysothemis uma voz própria, carregada de urgência. Waltraud Meier é um espetáculo à parte como Clytaemnestra, a voz de enorme alcance recriando as sombras que se abatem sobre a personagem; por sua vez, o Orestes de René Pape tem vigor sem perder um certo sentimento de ternura com relação à irmã. No todo, o mais fascinante é a maneira como as vozes se misturam ao tecido orquestral. Gatti não tem medo de jogar a orquestra para o alto e sabe retroceder nos momentos de primazia vocal. O resultado é um jogo vertiginoso de altos e baixos, crescendos e decrescendos.